sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Projeto de Lei “Escola sem Partido”: subsídios para um juízo 1


Há algum tempo, a mídia vem dando visibilidade a uma discussão que já ocorre em setores da sociedade civil brasileira faz anos. Não se trata apenas de um debate nacional – visto que na Europa e nos Estados Unidos é já um tema ampla e longamente debatido, cujas consequências ainda não se delinearam com precisão, mas já começam a mostrar resultados concretos. Tampouco se trata de questão circunscrita a estratos restritos, especializados, da vida social brasileira, mas interessa a todos que, direta ou indiretamente, estão envolvidos com a educação. O debate ganhou algum espaço na mídia especialmente quando o Senador Magno Malta propôs, em 2016, o Projeto de Lei 193 (PL 193/16) [1], que acabou conhecido como “Projeto Escola sem Partido” [2]. Projeto este que, em setembro de 2016 – um mês depois de proposto aos senadores –, já contava, na consulta pública aberta pelo Senado Federal, com a opinião de 380 mil cidadãos: um recorde, desde que foi criada, em 2013, a ferramenta on-line de consulta pública dos projetos de lei em tramitação na casa legislativa [3].
O PL 193/16, em seu artigo 2º, apresenta os princípios da “educação nacional” e valoriza, entre outros, o princípio da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”, da “liberdade de aprender e de ensinar”, do “reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado” e – o que nos parece ser sua contribuição mais significativa – do “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Em seu parágrafo único, o mesmo artigo 2º estabelece o veto à “aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”. Já o artigo 5º descreve uma série de cuidados que o professor deve ter no exercício de suas funções: desde evitar o constrangimento de alunos em razão de posições políticas, ideológicas, morais ou religiosas diferentes das suas, até o respeito do direito dos pais a que seus filhos tenham uma educação adequada às suas convicções. O projeto de lei também fala de um canal de comunicação que se criaria para receber reclamações de pais e de alunos relacionadas ao descumprimento da lei. Seja como for, o PL 193/16 precisa ser discutido: o que há de problema não pode ser justificativa para não aprová-lo, bem como o que há de virtude não pode ser motivo para não discuti-lo.
Com efeito, educadores dos mais diversos matizes, cientistas sociais, jornalistas especializados na temática, alunos engajados ou não em movimentos estudantis, membros de movimentos sociais, partidos políticos, estratos os mais variados da sociedade civil e mesmo o cidadão comum, a mãe e o pai de família, todos os envolvidos em algum grau com a discussão trazida à tona, da noite para o dia, se viram chamados a dizer alguma coisa sobre o PL 193/16; e os jornais estamparam, aqui e ali, os posicionamentos os mais diversos: desde a defesa militante do projeto até ao ataque não menos militante, passando pelos que se definem estrategicamente imparciais e neutros, e sustentam, num mesmo discurso, raciocínios antagônicos e divergentes.
O fato é que o PL 193/16 traz à tona uma discussão que não pode passar pela nossa indiferença e/ou imparcialidade e, sendo assim, se faz necessário algum subsídio para um juízo mais aprofundado, a fim de não acabarmos vitimados pelos ataques de alguma cruzada cultural, por algum viés ou proselitismo ideológico desses que asfixiam até mesmo o menos incauto dos cientistas – o que dirá o cidadão ordinário!
Iremos apresentar, em algumas postagens deste blog, uma série de recursos para um aprofundamento do debate, evidentemente em nada exaustiva, tirados da experiência como pais e educadores, iluminada pela obra de Luigi Giussani, em especial o livro no qual enfrenta mais de perto o problema da educação – Il rischio educativo (traduzido, no Brasil, como Educar é um risco) –, pelo Magistério da Igreja, sobretudo dos três últimos Papas – Francisco, Bento XVI e João Paulo II, além da Doutrina Social da Igreja e por alguns autores, de áreas diversas do conhecimento, e que têm em comum a preocupação com um juízo católico – isto é, verdadeiramente laico [4] – acerca do tema em pauta.
Nesta primeira postagem da série, apresentaremos alguns subsídios pensados a partir da óptica de pais e educadores, com os quais dialogamos ao longo de algumas semanas, tendo como foco uma questão que, na verdade, não diz respeito diretamente ao PL 193/16, mas discussões e juízos que se viram na imprensa sobre o projeto de lei.

1) A primeiríssima questão a se levar em consideração no debate em torno do projeto de lei é que família e escola, cada uma no seu âmbito, tem um papel na vida de um educando. Ambas são educadoras, mas se diferenciam em essencialidade. É notória a prioridade da família em relação ao professor e à escola. De forma que o que está em jogo é a importância de se retomar a presença da família durante toda a vida escolar de um filho, sobretudo porque será justamente neste âmbito – mais do que no da escola – que os aspectos formativos mais sólidos serão oferecidos à criança, como hipótese de trabalho. Em sua obra Il rischio educativo, Luigi Giussani lembra que,

para educar, é preciso propor adequadamente o passado. Sem essa proposta, do conhecimento do passado, da tradição, o jovem cresce problemático ou cético. Se não se propõe privilegiar uma hipótese de trabalho, o jovem se inventa para si, de forma desconexa, ou então se torna cético, o que é muito mais cômodo, porque não faz sequer o esforço de ser coerente com a hipótese tomada para si. [...] ‘É a tradição conscientemente abraçada que oferece uma totalidade de olhar sobre a realidade, oferece uma hipótese de significado, uma imagem do destino’. A pessoa entra no mundo com uma imagem do destino, com uma hipótese de significado, que ainda não está desenvolvida em livros: é o coração [...]. ‘A tradição, de fato, é como uma hipótese de trabalho com a qual a natureza lança o homem na comparação com todas as coisas. [5]
Vale dizer, portanto, que essa hipótese de trabalho é proposta, inicialmente, à criança pelos pais, na família. Como pais e educadores, é possível afirmar que a presença da família durante o período de estudo em casa, por exemplo, faz muita diferença para a aprendizagem da criança e do jovem, sobretudo, para a relação que este educando estabelecerá com o conhecimento. Disse-nos uma mãe como quem conversamos: “Nunca me esqueço da importância da minha vó, com apenas a 4ª série, me incentivando a estudar... sem ela perceber me passava o valor do estudo, a virtude da ordem, da laboriosidade e da obediência... me dando limites, dizendo-me quando era o momento de estudar e quando eu podia brincar... com isso ela me ensinou a priorizar as coisas”. A escola, os professores, com suas melhores intenções, suas melhores pedagogias, suas especializações e doutorados, não serão capazes de sozinhos incutir um amor ao bem que se converta em execução de bem, sobretudo enquanto os critérios forem ambíguos, pouco claros, ou não passarem de estratégia para “seduzir” os alunos. É a família quem deve acompanhar, por primeiro, a criança, o adolescente, o jovem na verificação dessa hipótese de trabalho. A mesma mãe citada antes, afirmou também: “A família cristã não pode temer, mesmo que erre, perder o seu filho porque irá acompanhá-lo. Esse acompanhamento, necessário e pedido pelo filho, nada mais é do que a continuidade da reproposição daquela hipótese. É como se disséssemos para o nosso filho: ‘estamos vigilantes, estamos aqui!’ E o que nos ajudará a reconhecer que erramos e exageramos será sempre a companhia concreta da Igreja em nossas vidas. É isso, hoje, que me permite não ter medo de ser firme e me posicionar, pois sei que nesta Casa, que é a Igreja, tenho sempre um pai que não me abandona, que é a minha força e me perdoa”.

Notas:
[1] Para conhecer o projeto na íntegra, acesse aqui.
[2] Trata-se de uma referência explícita ao Programa Escola sem Partido que, nos âmbitos estadual e municipal, em várias unidades da federação, já foi implantado ou está em discussão. Para uma consulta e uma compreensão, acesse aqui.
[3] A consulta pública está disponível aqui. Confira matéria sobre o recorde aqui.
[4] Discutindo o conceito de laicidade tal como aparece no Concílio Vaticano II, Giussani observava que “o homem contemporâneo, tendo que viver, e com um mínimo de ordem, acabou por conferir um poder exorbitante ao Estado, um poder quase divino”, um poder de matriz evidentemente totalitária. A vinda à tona do conceito de laicidade revoluciona, por assim, dizer, esse estado de coisas, na medida em que reafirma o “poder” do laico como algo que repousa justamente sobre a fé, tirando, portanto, o poder do Estado. (Cf. GIUSSANI, Luigi. Leigo, isto é, cristão: entrevista com Luigi Giussani realizada por Angelo Scola. Milano: Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo, 1988). Para um juízo acerca desse tema, vale também a leitura do post “A qual poder pertencemos?”, publicado no último dia 3 de outubro de 2016.
[5] GIUSSANI, Luigi. Educar é um risco: como criação de personalidade e de história. Bauru: Edusc, 2004, p. 14.

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